ARQUEOLOGIA DA PALESTINA ROMANA: CERÂMICA DE USO DOMÉSTICO


ARQUEOLOGIA DA PALESTINA ROMANA:

CERÂMICA DE USO DOMÉSTICO

Fernanda Ott


Este estudo se propõe a fazer considerações tipológicas sobre a cerâmica de uso doméstico durante a ocupação romana na Palestina, a partir do estudo de caso do sítio arqueológico de Apollonia.

Este sítio, localizado em Israel, foi palco da primeira etapa de escavações realizadas pela equipe interinstitucional do Projeto Apollonia (1). Através desta missão, denominada AP XII 98, ocorrida entre 12 a 31 de julho de 1998, entramos em contato, na área E ao Sul do sítio, com artefatos arqueológicos localizados junto às estruturas arquitetônicas referentes ao período de ocupação romana de Apolônia.

A relação a este período é amplamente atestada pela tipologia do material cerâmico, tais como morfologia da cerâmica doméstica (com frisos decorativos) e das lamparinas (redondas com disco decorado e bocal pequeno produzido localmente nas províncias orientais a partir do final do séc. I em diante); bem como pela própria constituição do edifício dotada de elementos característicos da arquitetura romana (nichos, peristilo).

A fim de delimitar nosso objeto de estudo, nos ateremos somente a uma apreciação descritivo-tipológica dos fragmentos cerâmicos ora encontrados nesta missão. Estes vestígios demonstram claramente sua funcionalidade doméstica por se tratarem de panelas, caçarolas, pratos, ânforas, potes, jarras, oinokoes, tigelas e bacias que foram utilizados e descartados por seus usuários. Conforme Hayes:

"as formas básicas da cerâmica doméstica para cozimento no mundo mediterrâneo nos tempos romanos eram panelas e caçarolas arredondadas e profundas, geralmente com pequenas alças inseridas junto às bordas, e freqüentemente com provisão para uma tampa que era normalmente de formato cônico raso com um pequeno puxador central". (2)

A grande maioria da cerâmica romana de uso doméstico de Apolônia foi encontrada fragmentada, o que dificulta uma análise a curto prazo. Isso se deve a alguns fatores pós-deposicionais naturais e culturais (3), tais como o fato de a estrutura na qual os vestígios foram encontrados apresentar sinais de um colapso ocasionado provavelmente por um dos diversos terremotos que assolaram a faixa de terra que compreende a Província Palestina (4); ou, em termos culturais, pelo próprio peso ocasionado pelo acúmulo de refugo depositado no local, após o período de vida útil do edifício.

Para melhor ilustrar a tipologia cerâmica romana ora estudada, recorremos a exemplos onde podemos constatar vasos inteiros similares aos encontrados na área E no sítio de Apolônia: a cerâmica do sítio de Kefar Hananya, na Galiléia (5), utilizada aqui meramente a título de demonstrar a padronização destas formas pelos romanos de todas as regiões do Império. As tigelas e panelas de uso doméstico encontradas neste sítio apresentam características como frisos decorativos e formato arredondado.

Quanto a essa questão, a maioria das cidades e áreas rurais do mundo romano eram supridas por oleiros locais, os quais, eventualmente reproduziam - com pequenas alterações locais - o formato padrão da cerâmica romana. Segundo Greene:

"A civilização romana apresentou duas características muito distintas durante o curso de sua expansão de cidade-estado a Império num período de cerca de 500 anos. Capazes de absorver aspectos úteis de culturas pré-existentes, também estendendo um modus vivendi romanizado (mais do que apenas um mero controle político), inspirando mais pela simples imitação do que pela força". (6)

Ainda quanto a essa questão, o fato de o número da amostragem cerâmica romana encontrada na área E - única área de ocupação romana escavada até o presente momento no sítio - ser ainda muito restrito em relação a cidade como um todo, não temos elementos suficientes que possam constatar uma possível adaptação local.

Levando em consideração as publicações relativas a duas outras missões anteriores (nos anos de 1980-81 e 1992-93) na mesma área E, verificamos que a cerâmica já encontrada junto à estrutura romana em questão constava, conforme Roll, de:

"um grande número de jarros de armazenagem local engobados, finas peças de Sigillata Oriental e louça de engobo vermelho africano, os quais são indicativos de laços comerciais com os principais centros e produção cerâmica do Mediterrâneo Oriental e Norte da África". (7)

Roll e Ayalon também registraram que encontraram "um grande depósito de cerâmica relativa ao século III d.C. incluindo louça importada da Itália e Norte da África jarros com inscrições pintadas (...)" (8)

Verificamos ainda, na área por nós escavada, uma quantidade substancial de fragmentos de jarros cerâmicos de armazenamento, neste caso o formato auxilia-nos na identificação funcional destes utensílios. Grandes jarros com formato arredondado e com base reta, normalmente potes profundos com duas alças próximas à borda, são indicativos de utilização pelos romanos para armazenar sólidos como grãos e cereais. É característico desse período uma forma estilística cerâmica frisada, com engobo ou não, amplamente encontrada em sítios arqueológicos de ocupação romana ao redor do Mediterrâneo.

Encontramos, também, uma quantidade significativa de fragmentos de ânforas - vasilha cerâmica com duas alças e base pontuda. Essas ânforas serviam para armazenagem e transporte, capazes de conter uma capacidade volumosa de líquidos (especialmente vinho e azeite de oliva). Encontramos essas vasilhas com diferentes formas de corpo, alças, bordas e bases.

A palavra ânfora (originada do grego amphoreus) também significava capacidade de medida ( 1 ânfora = 26 litros).

Hayes afirma que as ânforas tinham seu formato específico para garantir a segurança em seu transporte, facilitando o seu desembarque, podendo ser encaixada verticalmente em navios ou nas casas. Estudos comprovam que essas vasilhas tinham formatos adaptados ao conteúdo que estas iriam transportar. Vários tipos de ânforas foram produzidas nos tempos romanos. No século passado estas foram classificadas por Dressel (9 e sua tipologia é muito utilizada ainda hoje. Uma recente reclassificação foi feita pelos ingleses Peacock e Williams (10), adicionando resultados de análises petrográficas dos grãos de areia de fonte dessa matéria-prima, nos casos onde os selos indicadores de sua proveniência e a documentação sobre os sítios oleiros produtores das mesmas são ausentes.

O estudo desse tipo de vasilha auxilia na reconstituição das relações comerciais do mundo romano. Ressaltamos que Apolônia foi uma cidade costeira com registros arqueológicos da existência de um porto natural próximo à área E. Nesta área foram encontrados os fragmentos de ânforas acima citados, utilizados em tempos de ocupação romana. Análises futuras desses fragmentos poderão clarificar a sua origem e as relações comerciais entre Apolônia e o comércio do Mediterrâneo.

Além dos grandes jarros e ânforas de armazenamento, também foram encontradas nesta escavação jarras de pequeno porte que eram utilizadas como utensílios de mesa. Seus gargalos alongados identificam sua função de verter líquidos tais, como água, azeite, liquamen - ou garum (12) e vinho.

No caso de servir o vinho, as jarras específicas para essa função eram as oinokoes- (assim como no caso das as ânforas, oinokoes também tem sua origem numa palavra grega: oinokhoé). Em Apollonia, foram encontrados 16 fragmentos de bocas trilobadas deste tipo de jarra. Sua função era a de servir o vinho depois de misturado com água, ou seja, depois que a pasta concentrada do vinho tivesse sido diluída em uma cratera.

A apreensão de todas estas formas acima mencionadas nos oportuniza uma melhor compreensão sobre aspectos da rotina diária e, também, da apropriação desses artefatos pelos usuários romanos do edifício no qual estes fragmentos foram encontrados.

Ainda no sentido de relacionar aspectos da rotina diária e da apropriação desses artefatos pelos usuários deste edifício de Apollonia, o próprio conjunto do material arqueológico encontrado nos ajuda a inferir sobre a função do edifício escavado. Visto que a cerâmica encontrada aponta para um contexto tanto doméstico como comercial, podemos relacionar o seu uso com três tipos de edifícios passíveis de terem correspondido à função da estrutura na qual estes artefatos se encontravam inseridos: armazém, mercado ou uma residência. (13)

Focando a cerâmica do ponto de vista de sua funcionalidade de armazenamento, os jarros e ânforas de grande porte poderiam estar intimamente relacionados a um edifício romano específico de armazenamento de alimentos: horreum. Considerando a ampla amostragem de pratos, panelas e jarras domésticas encontradas, poderíamos aceitar - não descartando os jarros e ânforas - a interligação destes artefatos a um mercado, conhecido por macellum pelos romanos, ou a uma villa, a residência romana por excelência. Não pretendemos abordar a problemática da interpretação da função do edifício escavado, tema amplamente investigado pela profa. Me. Raquel Rech (14), apenas reportar que a análise tipológica da cerâmica ora encontrada levanta subsídios para tal.


II- Conclusões Preliminares


Muitos recipientes cerâmicos, embora diferentemente denominados, poderiam servir para o mesmo propósito, ou seja auxiliar na vida doméstica, cada um com sua função específica, preparar os alimentos, armazená-los ou transportá-los. Como o objetivo de nosso estudo é apontar o uso destes artefatos romanos encontrados em Apolônia consideramos ser de importância fundamental para a interpretação de uma sociedade uma análise laboratorial cuidadosa do material cerâmico. No caso de Apolônia, não foi possível ainda essa análise, dificultada pela distância geográfica entre TAU e UFRGS e pela burocracia existente quanto à saída de peças arqueológicas de Israel. Quanto a esse respeito, está prevista a chegada ao Brasil de 50% do material escavado na Missão AP XII 98, para análises laboratoriais e posterior exposição.

Acreditamos ser válida essa apreciação preliminar dos achados cerâmicos da área E do sitio de Apolônia, para um contato com o estudo destes vasos cerâmicos. A análise científica destes artefatos como, classificação, datação e tecnologia promoverá a sua cientificidade e uma interpretação mais acertada sobre a fabricação e o uso destes artefatos pelo homem. Poderemos responder questões como: "quem fabricou este material?", "quem o utilizou?", "se existem laços sociais, comerciais ou outros?", possibilitando, assim, um estudo sobre a dimensão humana deste sítio.


III- Bibliografia Utilizada


ADAM-BEYEWITZ, D. Common Poterry in Roman Galilee.Ramat-Gan: Bar-Ilan University Press, 1993.

DRESSEL,H. Corpus inscriptionum latinarum XV.ii.1.Berlim:1899.

GREENE, Kevin. Roman Pottery. University of California, 1992.

HAYES, J. Handbook of Mediterranean Roman Poterry. Okalahoma: University of Oklahoma Press, 1997.

PEACOCK, D. and WILLIAMS,D. Amphorae and the Roman Economy.London:1986.

RECH, Raquel. "A Missão Arqueológica AP XII98 e sua Relação com a Constituição e Disciplinamento do Espaço Urbano de Apollonia"- Dissertação de Mestrado defendida junto ao PPGH-PUCRS em Janeiro de 1999.

RENFREW,C. y BAHN, P. Arqueología.Teorías, Métodos y Práticas. Barcelona:Akal,1993.

ROLL, I. , AYALON, E. Apollonia-Arsuf IN: The New Encyclopedia of Archaeological Excavations in the Holy land. 1993, vol.1.

ROLL, I. Medieval Apollonia-Arsuf: a Fortified Coastal Town in the Levant of the Early Muslim and Crusader Periods. In: Autour de la Première Crusade- Actes du Colloque de la Society for the Study of the Crusaders and the latin East. Paris: Publications de la Sorbone, 1996: 598.

RUSSEL, K. "The Earthquake Chronology of Palestine and Northwest Arabia from the Second through the Med- 8 th. Century A. D."BASOR 260,1985.

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